A incrível, verdadeira historia da Mariana Ô

A incrível, verdadeira historia da Mariana Ô

Esta é a história de Mariana Ô. É uma história que desmente qualquer probabilidade – alguns diriam até mesmo: desmente tudo. Aqui, há milagres. Existe desespero, mas há salvação. E, claro, existe uma heroína.

Publicado no livro “Palavra de Gringo. Um olhar estrangeiro sobre o Brasil” (Lingua Geral, Rio de Janeiro, 2014)

Conheci a Mariana no início de 2013. Poucas semanas antes, munido de duas mochilas, tomara um avião na Alemanha e deixara o país. Após 17 anos em Berlim quis tentar minha sorte no Rio de Janeiro. Parti rumo ao desconhecido e cheguei curioso, mas também inseguro, um estranho. Um iniciante em uma cidade para gente experiente.

Haviam me dito que o Brasil mudara bastante, que se tornara uma potência econômica, que agora dispunha de programas sociais exemplares. Lia-se que o Brasil não era mais o eterno país do futuro, mas sim, finalmente, o país do presente: mais justo, mais democrático, mais humano. E que, finalmente, as coisas estavam se mexendo também no Rio. Que a cidade, um Brasil em miniatura, tornara-se mais segura. Que estava sendo arrumada para a Copa e a Olimpíadas e que agora havia regras para tudo, até para abrir um coco.

Claro, eu sabia que uma cidade não se conhece através de artigos de jornal, reportagens na TV ou guias de viagem. O que caracteriza uma cidade são as pessoas – seus conflitos, suas paixões, suas lutas. Elas são as janelas que se abrem para um lugar, as portas pelas quais se deve passar. Quando cheguei, eu não conhecia ninguém.

Vi Mariana poucos dias antes do Carnaval na rua, vindo em minha direção – ereta, segura, ritmada. Um vestido sem mangas com estampa africana mostrava seus ombros negros.

Eu disse:
– Oi, boa noite.
Ela disse:
– Eu sou Mariana.

Os muros e as casas refletiam o calor do dia. A porta para o Brasil se abrira para mim. E foi um portão.

Ela viera de uma roda de samba em Santa Teresa, aonde cantara, e estava a caminho de casa. Sentamos em um boteco de esquina no Largo dos Guimarães e pedimos duas cervejas. Ela não tomava Antarctica nem Brahma, nem qualquer uma daquelas imitações brasileiras de cerveja. Gostei dela imediatamente. Algumas pessoas das outras mesas nos observaram.

– Somos bem clichê – disse Mariana. – Uma negra e um gringo.
Eu disse: – Dane-se.
Ela riu. Começou ali um conversa, um diálogo, que perdura até hoje.

Poucos dias depois combinamos uma caminhada. De Santa Teresa, subimos até o Cristo. Um dia de sol, bermudas, mochilas com água e banana. Ao chegar ao mirante de Santa Marta e olhar para a cidade a nossos pés, Mariana começou a falar da sua vida. Simples assim. Era o seu jeito de não complicar as coisas. É preciso contar o que se deve contar.

– Era muito pouco provável que um dia eu estivesse aqui com um gringo. Havia muito mais chances de eu me tornar faxineira ou prostituta – disse ela. – Ou então sofrer uma morte violenta e precoce.

Até então, não gastara um pensamento sequer sobre o passado de Mariana. Sabia apenas que era uma requisitada militante social e ativista negra, que gostava de cantar e morava em Santa Teresa, onde muitos a chamam jocosamente de “santa” do bairro.

– Nasci em Anchieta, no norte do Rio – disse – Preta, pobre, mulher, zona norte.

Quando se quer descobrir qualquer coisa sobre as chances de uma pessoa na vida, esses são os indicadores. O Brasil é uma sociedade presa em suas estruturas coloniais, com uma elite blindada contra invasores ou ideias inovadoras.

– Tua origem marca o teu caminho – diz Mariana.
O que é admirável, sendo dito por ela, pois sua própria trajetória apontava em uma direção completamente diferente.

Num primeiro momento, o caminho de Mariana ia direto até o precipício.

Aos 13 anos, Mariana não sabia para onde ir, mas intuía que em qualquer lugar devia ser melhor do que no inferno que ela chamava de seu lar. A mais velha de três irmãos, arrumava a casa, esfregava o chão, lavava a roupa e a louca, cuidava das irmãzinhas. Mas para sua mãe, uma alcoólatra, nunca nada estava bom. Ela costumava bater em Mariana – batia no rosto, nas têmporas, batia sua cabeça na mesa. Toda vez que Mariana era internada no hospital, mentia. Dizia que topara contra um poste ou que caíra no chão.

O pai de Mariana, por sua vez, traía a mãe com uma mulher que colocara dentro de casa e de quem dizia que era sua irmã. Todos conheciam a história verdadeira, menos a mãe. Movido por um instinto protetor exagerado, o pai proibia Mariana e suas irmãs de fazerem muitas coisas de que gostavam: escutar música romântica, assistir a novelas na TV, brincar com outras crianças.

– Ele temia que eu pudesse vir a me apaixonar e engravidar – diz Mariana. Assim como aconteceu com muitas garotas no bairro. – Não queria que os vizinhos fofocassem.

Um dia, o pai descobre Mariana com um rádio sob os lençóis e destrói o equipamento e Mariana tomou uma decisão. Do seu jeito. Saiu de casa, sem saber para onde. Simplesmente saiu. Rumo ao desconhecido. Obedecendo a um impulso, à certeza de que a vida tinha mais a lhe oferecer.

Mariana entrou num trem rumo ao centro. Ao ver a torre de uma igreja, saltou. Católica, Mariana conhecia as histórias da Bíblia, admirava Maria, acreditava em milagres e em santos.

Pela primeira vez, Mariana dorme na rua, deixa seus parcos bens com um simpático dono de botequim, faz uma cama com cartolina. Ela se adapta à nova vida. Durante o dia, vai de porta em porta, pede comida, água, um banho de chuveiro. À noite, vai à igreja e reza. Aprende a lidar com os “donos da rua”, como ela diz – um bando de jovens para o qual faz serviço de aviãozinho. Quando bate frio ou fome, ela cheira cola. Eram os anos 80.

Quando Mariana volta para casa para buscar roupa, encontra o pai, que a pede chorando que fique, que não vá embora de novo. Ela sabe que não adianta e o deixa plantado em pé.

Mariana ganhou autoridade diante do pai. Mas no Rio é apenas uma de milhares de crianças que mora nas ruas. Imagino que era uma daquelas figuras miseráveis que hoje se veem em volta da Central do Brasil ou sob as pontes no centro e que se tenta evitar. Não queremos vê-las, sentir seu cheiro ou tocá-las. Preferimos que nem existissem.

Durante a nossa caminhada passamos por um muro pintado. O desenho mostra uma jovem negra orgulhosa com uma camiseta com a inscrição: “É bela a mulher que luta”. Mariana quer ser fotografada ao lado do grafite. Imagino que a menina na pintura grafitada deva ter a mesma idade que ela tinha ao fugir de casa. O que aconteceria na Alemanha se uma garota de treze anos desaparecesse? A polícia faria buscas, haveria anúncios no rádio e na TV local, cartazes seriam colados na rua mostrando a sua fotografia. Na Alemanha, uma criança não poderia simplesmente sumir. No Brasil, sim.

Alguns dias depois do nosso passeio ao Cristo eu visito Mariana no seu trabalho, Quero fazer uma reportagem sobre o Complexo da Maré, onde Mariana trabalha numa ONG – coordenando, entre outros, as atividades culturais com crianças e jovens. Na hora do almoço, ela me encontra na passarela 9.

À primeira vista, a Maré parece um bairro buliçoso e agitado. Existem dúzias de lojas, restaurantes, bares, salões de beleza, até mesmo bancos e uma quadra de futebol. Milhares de pessoas estão nas ruas estreitas e sem arvores – a pé, de moto ou de bicicleta. À segunda vista descobre-se o que destoa dessa normalidade. Sentados nas esquinas, em mesinhas de plástico, como executivos, adolescentes de camisetas, chinelos e shorts, diante de duas sacolas transparentes: uma com papelotes, outra cheia de dinheiro. No meio, pistolas pesadas. Uns rapazes manipulam seus fuzis AR-15.

Raros são os brasileiros que eu conheço que já estiveram lá. Muitos torcem o nariz. Um colega que trabalha num grande jornal alemão nem pode pisar na Maré – normas da redação, que teme por sua segurança. Mas caminhar por aqui com Mariana parece a coisa mais normal do mundo. Ela cumprimenta, acena e ri, move-se e se comporta na Maré como em Santa Teresa. Cá e lá, as pessoas a abordam, abraços, beijos. “Mariana, querida, tudo bem? Você está linda!” Cordialidade brasileira.

Vamos a um restaurante a quilo. Três moças vêm à nossa mesa, adolescentes atraídas pelo estrangeiro louro. Querem saber se sou namorado de Mariana. Ela sorri e começa a conversar com elas, perguntando pelo seu nome. Uma delas está barriguda e Mariana pergunta como está a gravidez e se é o primeiro filho. Em poucos instantes, ganha a confiança da garota. Elas riem e Mariana diz que não é uma boa ideia fumar cigarro.

É sempre a mesma história, diz Mariana. Os rapazes se recusam a usar camisinha e as meninas têm medo de perder os rapazes, engravidam, os filhos são criados pelas avós. Na escola, em casa, em lugar algum essas meninas recebem as informações para conseguir lidar com a situação. Ninguém lhes dá auto-estima.

Além do Complexo da Maré, Mariana também trabalha do outro lado da Avenida Brasil, no Complexo do Alemão, bem como na Cidade de Deus. Cuida de adolescentes grávidas, fala com elas sobre amor, sexo, drogas e filhos. E diz que é frustrante quando as meninas engravidam pela segunda vez.

Quando Mariana ainda era menina de rua, com o tempo foi aumentando seu raio de ação. Foi até o centro do Rio. Na Lapa, de vez em quando cedia às abordagens masculinas – não por dinheiro, mas por um prato de comida. “Mas continuei virgem, aquilo era importante para mim”, diz Mariana. Ela continua católica, crê em Maria e milagres.

No centro do Rio de Janeiro, Mariana descobre outra coisa: a Biblioteca Nacional. Depois que fugiu de casa, nunca mais frequentou a escola, mas está ávida por histórias. E por um mundo diferente do seu, maior, mais bonito, mais cheio de sentido. Começa a passar as tardes entre as estantes de madeira no honorável prédio. Lê “Cem anos de Solidão”, de García Márquez, “Admirável mundo novo”, de Aldous Huxley, “Os capitães da Areia”, de Jorge Amado. Os livros lhe dão calor – são pequenas fugas e grandes aventuras. “O Pequeno Príncipe” de Antoine de Saint-Exupéry se torna o seu livro preferido. Ela se identifica com o menino sonhador. Só com o coração se vê as coisas direito porque o essencial, o que importa de verdade, permanece invisível para os olhos. Assim como Mariana, o pequeno príncipe é frágil.

Um dia, Mariana quase quebra.

Ela tem 17 anos, está na rua, incrivelmente atraente: esguia, feminina, seios grandes, pernas compridas. Um carro pára junto a ela. O motorista se apresenta como pregador evangélico e apresentador do rádio e promete um emprego para ela na emissora, na Ilha do Governador.

Quando Mariana passa lá no dia seguinte, o homem a apresenta aos empregados como nova funcionária da emissora e a leva de carona em seu carro. No caminho, pára e compra um suco de laranja. Pouco depois, ela se sente paralisada, não consegue mais se mexer nem dizer palavra. O pastor a leva para um quarto num motel e tenta estuprá-la. Quando vai ao banheiro, Mariana consegue reunir as últimas forcas para escapar pela janela. Arrasta-se até um posto de gasolina e desmaia. No dia seguinte, acorda em um hospital.

Poucos dias depois, ela volta à emissora na Ilha do Governador. Um técnico de som diz que ela não foi a primeira garota que o apresentador anestesiou e de quem abusou, e que ele costumava misturar alguma coisa no suco para as mulheres. Mas diz também que nem adianta dar queixa na polícia. Afinal, quem acredita em uma garota de rua que depõe contra um pastor evangélico popular?

– O sistema está imbuído de racismo e mulheres negras são vítimas predestinadas – diz Mariana.

No Brasil, mulheres negras têm o menor índice de escolaridade e formam uma pequena minoria nas universidades. Praticamente não existem no sistema político. Em compensação, ralam aos milhões no setor informal para sustentar suas famílias. Elas formam a espinha dorsal do Brasil. Todas as manhãs, pegam trens superlotados para sair da zona norte, e ir até a zona sul, onde limpam os apartamentos dos ricos e cuidam das crianças. Ao mesmo tempo, são as mais atingidas pela violência e pelos assassinatos.

– A mulher negra é a verdadeira heroína do Brasil – diz Mariana. – Sem ela, o país desmoronaria.

Poucos dias mais tarde, em Santa Teresa, começa o Carnaval. A tradicional roda de samba no Largo das Letras transcorre de maneira rotineira e um pouco sonolenta. Mas o público descobre Mariana. Chamam-na, puxam-na até o palco. Pelo microfone, ela saúda com sua voz forte e levemente rouca: “Boa noite, gente!” Imediatamente, todos prestam atenção, centenas de olhos observam a mulher imponente com seu turbante africano Ela entoa um jongo, os percussionistas a acompanham, o público canta, a multidão dança no ritmo, Mariana salvou a roda, os líderes da banda se inclinam e beijam suas mãos. Mas percebe-se que também para eles não é fácil ter o show roubado por uma mulher.

– O samba é um mundo bem machista – diz Mariana.

Naquela época, na Ilha do Governador, o técnico de som teve pena da menina de rua que está diante dele aos prantos, furiosa e desamparada. Consegue um emprego para Mariana, como cuidadora de uma senhora idosa e acamada. Ela consegue um quartinho no apartamento da senhora e de seu marido – pela primeira vez em muitos anos, saiu da rua. O casal exige que Mariana faça uma formação como auxiliar de enfermagem, e ela segue a orientação.

Tudo parece muito bem encaminhado. Mas não seria a história de Mariana, se não houvesse mais um desafio, mais um obstáculo. Um belo dia, à noite, o marido da idosa se deita junto de Mariana e começa a acariciá-la. Ela finge que está dormindo. Não quer perder o emprego – o dilema típico para tantas empregadas. Como tudo isso continua por algumas semanas, Mariana não quer mais. Encontra um novo emprego e agora cuida de um rapaz com síndrome de Down.

E ela volta à igreja. Todo domingo vai à igreja católica de sua antiga comunidade. O padre é da Teologia da Libertação, interpreta o Evangelho como chamamento à luta contra pobreza e injustiça. Isso agrada a Mariana. Ela começa a se envolver na comunidade. Os outros prestam atenção em seu carisma e no seu talento de organização. Certa vez, ela encontra Leonardo Boff, um dos fundadores da Teologia da Libertação. Ele a incentiva. Ela nem completou os 20 anos ainda quando recebe a incumbência de organizar grupos de base na zona norte do Rio, coordenando círculos bíblicos e interpretando a Bíblia.

– Meu único talento consistia em querer mudar o mundo – diz Mariana. Seus grupos são conhecidos como “cristãos vermelhos” no Rio. Lutam pela melhoria da situação nas favelas.

É meio da noite, depois do show, quando Mariana recebe um telefonema dizendo que na Maré a situação estava infernal. Ela chama um táxi e vai até a favela. O Bope invadiu o local, depois que um funcionário da unidade de elite foi fuzilado por traficantes. Agora, o Bope vinga o colega assassinado arbitrariamente. Os habitantes da Maré viram reféns do Estado que deveria protege-los.

Mariana fica na favela até de madrugada. Embora também tenha medo, consola os moradores temerosos que têm medo do Bope e não têm coragem de voltar às suas casas. Escuta histórias de agentes que ameaçam mulheres e as ofendem sexualmente, que destroem eletroeletrônicos e atiram, ou manipulam facas. No dia seguinte, o balanço: nove moradores assassinados. A imprensa protesta brevemente. Depois disso, o assunto é esquecido. A vida dos pobres não conta muito no Brasil.

Aos 20 anos, a vida de Mariana muda radicalmente. Ela conhece seu primeiro marido, um engenheiro – meio branco, meio índio. Pouco depois, nasce sua filha. Mas o casamento acaba porque a família do marido não aceita negros. Certa vez, uma tia do marido comenta com Mariana:
– Você é espertinha, negra. Entrou na nossa família através da cama.
E o marido de Mariana é fraco demais para defendê-la.

Mas Mariana não perde a coragem. Novamente, está numa encruzilhada.

Ela se lembra de que na igreja costumavam dizer que sua voz era boa e possante. Candidata-se a uma vaga em uma escola de música e é aceita. Forma sua voz e, numa apresentação, encanta Augusto Boal, o famoso fundador do Teatro do Oprimido. Ele contrata Mariana para seu teatro de rua e ela passa a se apresentar com a trupe. Sua missão é fazer parar os pedestres na rua com sua cantoria.

– Passei por todas as portas que se abriram para mim – diz Mariana, – geralmente, sem saber o que me esperava.

Através do teatro, Mariana conhece alguns vereadores do PT. Vira assessora parlamentar e usa sua experiência em questões que dizem respeito à vida cultural nas favelas. Mas quando o PT chega ao poder em Brasília, Mariana se desilude e se crê mais representada pelo PSOL, chegando finalmente à conclusão de que a política partidária não é o meio certo para transformar a sociedade.

– A transformação precisa vir de baixo para cima. Precisa criar raízes e construir um caminho para cima, com força. Sem raízes, não presta.

Naquela época, Mariana adota um nome de guerra: Dandara, a esposa de Zumbi. Uma escrava foragida que luta contra os senhores coloniais e se suicida ao ser presa.

– Ao virar Dandara, virei negra – diz Mariana – e me dei conta do meu lugar na sociedade. Dizem que nosso cabelo é ruim, veêm-nos como putas ou objetos sexuais. Todos os dias precisamos lutar pelos nossos direitos. Mas nas telenovelas as mulheres negras geralmente aparecem como faxineiras.

Efetivamente, hoje se veem mais pessoas escuras nos programas noticiosos na Alemanha do que no Brasil. Parece que o país renega a visibilidade aos negros, aos quais deve uma grande parte de sua cultura.

Certa vez, Mariana recebe um convite para um teste de um diretor de teatro que também trabalha para a TV Globo, para uma peça a ser levada em um dos teatros mais famosos da zona sul do Rio. Querem contratá-la de cara. Mas ela se recusa. É uma porta pela qual não quer passar.

– Acho que fui radical demais – diz ela. – Mas eu não quis trabalhar com ninguém daquela emissora. Devia isso à minha consciência. Tinha aprendido um teatro que visa tirar opressão, definir os papéis entre opressor e oprimido na busca de uma melhor perspectiva o que me parece totalmente contrário aos objetivos da Rede Globo em se tratando da formação de uma nova sociedade.

Quando Mariana engravida pela segunda vez, muda-se para a cidadezinha serrana de São Pedro da Serra, aonde vivem muitos descendentes de imigrantes suíços. Trabalha como faxineira e canta nos bares do lugarejo. Quando visitamos São Pedro da Serra juntos, acontece o mesmo que na Maré e em Santa Teresa. Todos a conhecem, cumprimentam, abraçam Mariana. E fazem-na prometer que irá cantar na mesma noite.

Ao voltar de São Pedro, e apesar de não ter terminado a escola, Mariana continua uma trajetória que continua até hoje. Torna-se mediadora social e começa a trabalhar em várias favelas – com crianças que sofreram abuso, garotas grávidas, mulheres… a população marginalizada. Hoje, Mariana coordena as atividades culturais de uma ONG renomada e é mediadora de direitos humanos na Anistia Internacional.

– Mas, antes de tudo, eu sou negra e mãe – diz Mariana. Ser negra e mãe ao meu ver, quer dizer que, preciso lutar por um lugar que reconheça meu valor, para que possamos pensar num país mais justo para os que saem desse ventre dessa patria mãe gentil.

Mariana matricula seu segundo filho em uma das melhores e mais caras escolas do Rio. É a única negra na reunião de turma de seu filho. Outro dia seu filho foi xingado de “escravo” por um colega, cujo pai nem sabia como pedir desculpas.

A filha de Mariana acabou de ter um filho e Mariana virou avó, aos 46 anos apenas. Sua mãe morreu. Seu pai a visita de vez em quando em Santa Teresa e se sente estranho, Mariana o perdoou. Em sua própria família é chamada de “gringa”, por causa do seu estilo de vida.

Em sua trajetória improvável, Mariana conserva uma amizade com o governador do Rio de Janeiro e sua família. De vez em quando, eles a convida para festas de família e lhe manda e-mails. Quando, em 2013, manifestantes sitiaram seu prédio semanas a fio, ele lhe perguntou, com lágrimas nos olhos, onde estava errando. Onã respondeu:

– Vocês vivem suas vidinhas em um mundo blindado. Vocês não conhecem o Brasil.

Mariana conseguiu escapar às probabilidades estatísticas. A garota negra de Anchieta, que cresceu em uma família dilacerada, sem educação escolar, que se prostituiu e sofreu abusos, tornou-se uma mulher bem-sucedida. E não só no trabalho: bem-sucedida na vida, enquanto pessoa humana, enquanto pessoa que toma suas próprias decisões livremente.

Mariana era sozinha. O que conseguiu foi através de esforço próprio. Ela superou desafios que teriam quebrado outras pessoas; ultrapassou obstáculos que, para outros, seriam altos demais.

Nem sei o que eu teria visto do Brasil sem Mariana e o que eu entenderia do país. Só sei que a minha visão seria bem mais pobre.

Tradução do alemão: Kristina Michahelles